Os verbos quase sempre devem concordar com o sujeito. Essa relação de concordância é uma das formas de identificar o sujeito da oração.
Leia o poema que o escritor Carlos Drummond de Andrade fez em homenagem a Cacilda Becker, por ocasião da morte dessa atriz brasileira. Perceba como o poeta estabelece propositadamente uma estranha concordância entre verbo e sujeito.
Atriz
A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Piraçununga
Cleópatra e Antígona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um dos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.
Carlos Drummond de Andrade. In Versiprosa.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond.
O texto de Carlos Drummond de Andrade faz referência a diversas personagens para enaltecer a variedade de tipos representados pela atriz.
Antígona: personagem da tragédia do dramaturgo grego Sófocles (século V. a.C.).
Maria Stuart: personagem da tragédia de 1800, do escritor alemão Friedrich von Schiller.
Mary Tyrone: personagem da peça Longa jornada para dentro da noite (1941), do dramaturgo norte-americano Eugene O'Neill.
Marta de Albee: personagem da peça Quem tem medo de Virginia Woolf? (1962), de Edward Albee.
Margarida Gauthier: personagem de A dama das camélias (1852), de Alexandre Dumas Filho.
Alma Winemiller e Hannah Jelkes: personagens de The night of the Iguana (1959), do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams.
Clara Zahanassian: personagem de A visita da velha senhora (1956), do dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt.
Júlia: personagem da peça Adorável Júlia, de Marc-Gilbert Sauvajon (1962).
Godot: personagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett (1948-49).
O texto inicia-se com uma referência à gramática: "A morte emendou [corrigiu] a gramática.". No verso seguinte, no entanto, há uma frase que desrespeita a gramática.
a) Por que a oração "Morreram Cacilda Becker." vai contra as regras gramaticais?
b) Por que, no contexto do poema, a oração "Morreram Cacilda Becker." estaria correta?
GABARITO
a) O sujeito singular Cacilda Becker exigiria, segundo a gramática, o verbo flexionado no singular.
b) Para o poeta, como Cacilda Becker desempenhou muitos papéis em sua carreira, ela "era muitas" e havia "mil Cacildas em Cacilda". Assim, não teria morrido um único ser, mas vários: o verbo no plural estaria corretamente se referindo a essa pluralidade de seres.
COMENTÁRIO
A concordância surpreendente de uma frase como "Morreram Cacilda Becker." só é aceitável porque o poeta pretende, justamente pela ruptura com os padrões da língua culta, chamar a atenção do leitor para um sentido especial.
Na fala cotidiana também se constroem muitas orações que desrespeitam as regras de concordância. É comum ouvir frases como "Apareceu os policiais.". Em situações formais de comunicação, erros como esse são desvantajosos, pois indicam despreparo do falante.