Se não havia ninguém na casa, além dele e Maria ... Intrigado, experimentou o trinco: no quarto cor-de-rosa penteadeira oval.
Uma, duas, três bonecas de luxo. E, da cama, sentadinha, sorria a gorda senhora.
— Entre, seu moço.
Dois passos no reino das bonecas: ar adocicado de incenso, pó de arroz, esmalte de unha.
— É parenta da Maria?
— Não adivinha? — E sorria, faceira, lábio muito pintado. — É minha filha.
— Tão jovem ... — Bem a avozinha do Chapeuzinho Vermelho. — Parece irmã!
No canto do espelho alinhavam-se os galãs de cinema.
— Muito gentil. Você quem é?
— Amiguinho dela.
A gorda afastou o abajur, aninhada na sombra misteriosa.
Esqueceu no joelho a revista, em gesto pudico fechou o quimono encarnado.
— Aceita um bombom? — e retirou do lençol uma caixa dourada. — Como escondida ...
Lambeu o dedinho curto, a tinir o bracelete:
— Segredo de nós dois!
— De mim ela não vai saber — e beliscava o cacho loiro da boneca.
— O moço não quer sentar?
Ao vê-lo correr o olho, encolheu-se no canto:
— Lugar para mais um.
Respeitoso na beira da cama, apanhou a revista de fotonovela.
— Os dois brigaram?
— Sabe como ela é.
Aborrecido virava as páginas: dedo peganhento de chocolate o olhinho gorducho.
— É recheado de licor! — e oferecia na ponta da língua um bocado meio derretido.
Era a avozinha ou, no quimono fulgurante de seda, o próprio lobo?
Largou a revista ao pé da cama — voltar à Maria e pedir mil perdões? Na mesinha o retrato em moldura prateada.
— Sou eu.
A menina com a cesta de amora.
— Já fui bonita.
— Ainda é — retrucou alegre —, ainda é.
Muito sério ao dar na sombra com o olho arregalado de sapo debaixo da pedra.
— Seu diabinho! — agarrou-lhe o polegar na mão lambuzada e, antes de soltá-lo, um apertão e mais outro.
Nada de avozinha, é mesmo o lobo. Ao mexer a cabeça, girava a parede e, enxugando o suor da testa, voltou-se para ela:
— Tem alguma bebida?
Exibiu os dentes alvares de pouco uso:
— Sou melhor que bebida.
Entre divertido e assustado, descansou o cotovelo na cama: propunha-se o lobo devorá-lo? Vislumbrou a cara na sombra: balofa, sem sobrancelha, o cabelo ralo. Por cima do quimono apalpou-lhe o peito: apesar de velha, o seio durinho.
— Quer minha perdição? — Meu Deus, a voz dengosa de menina. — Ai, diabinho peralta!
Brincalhona, correu a unha pela nuca. De repente o gemido rouco:
— Feche a porta.
TREVISAN, Dalton. Chapeuzinho Vermelho. In: O Vampiro de Curitiba.
Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 72-74.
1. Leia as correlações estabelecidas entre as frases do conto e suas interpretações.
I. "Bem a avozinha do Chapeuzinho Vermelho." Esta frase corresponde à impressão inicial do rapaz sobre a mãe da namorada quando ainda desconhece as suas artimanhas.
II. "Era a avozinha ou, no quimono fulgurante de seda, o próprio lobo?" Esta frase corresponde a um momento em que o rapaz ratifica suas suspeitas anteriores quanto à senhora e se sente emocionalmente fragilizado diante dela.
III. "Nada de avozinha, é mesmo o lobo." Esta frase corresponde a uma etapa em que o rapaz sai de seu torpor, ressaltando que, a partir dali, ele estaria recuperando o controle da situação.
IV. "Entre divertido e assustado, descansou o cotovelo na cama: propunha-se o lobo devorá-lo?" Esta frase corresponde à convicção de que a senhora não era uma vítima e ao espírito de análise demonstrado pelo personagem do rapaz.
Estão corretas apenas as afirmativas:
a) I e II.
b) I e IV
c) III e IV
d) I,II e III.
e) II, III e IV
2. É correto afirmar que esse segmento do conto corresponde:
a) A um encontro marcado entre os dois personagens que ainda não se conheciam até aquela ocasião.
b) Ao momento em que o rapaz, que havia brigado com sua namorada, descobre a presença da mãe na casa, mas depois retorna aos braços da amada, com asco daquela mulher.
c) A descoberta da sexualidade pelo menino, que, após uma briga em seu namoro inocente com a filha daquela senhora, conhece a mãe dela e é por ela seduzido.
d) A uma passagem constrangedora em que o rapaz sente um misto de atração e repulsa, mas se entrega à tentação sem remorso ou grandes conflitos por trair a namorada.
e) A um duelo entre os personagens, do qual o rapaz sai vencedor, pois ele tortura a senhora, fazendo com que ela se apaixone por ele, abandonando-a em seguida, ignorando suas súplicas.
GABARITO
1B - 2D
As questões exigem a capacidade de interpretação, de inferência de informações a partir da compreensão do conteúdo das linhas do texto. É necessário identificar as reflexões do rapaz (expressas, em geral, em discurso indireto livre) acerca da mãe de sua "amiga" e, sobretudo, como sua visão a respeito dela se altera conforme as estratégias de sedução da mulher vão ficando evidentes.
Ao resolver a questão 2, atente-se para as seguintes observações:
• a alternativa a traz uma informação equivocada por afirmar ter sido o encontro entre o rapaz e a mãe de sua namorada um encontro marcado. Fica claro que, já nas primeiras linhas do texto, tratava-se de um acaso.
• a alternativa b traz uma informação incorreta que sequer pode ser deduzida no final do conto. Não há sugestão alguma de que o rapaz tenha retomado para os braços da amada.
• o item c pode ser o item escolhido por muitos candidatos. A resposta não está correta, porque não se trata da descoberta da sexualidade por parte do menino. Trata-se mesmo de uma situação constrangedora em que fica claro, em muitas passagens do texto, o misto de atração e repulsa que acaba resultando na relação entre as duas personagens.
• Não há na alternativa e nenhuma informação que sequer tenha sido sugerida no texto.